Em um Brasil marcado por desigualdades de raça, gênero e orientação sexual, a trajetória de Adélia Sampaio se ergue com força simbólica: ela foi a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no país, abrindo caminho para gerações futuras.
Nascida em Belo Horizonte (MG), Adélia viveu até os 12 anos em um asilo de Santa Luzia do Rio das Velhas, após sua mãe, empregada doméstica, ter sido obrigada pela patroa a deixá-la lá. Aos 13 anos, sua irmã a levou ao cinema para assistir Ivan, o Terrível, de Eisenstein e foi ali, segundo Adélia, que decidiu que “um dia faria cinema”.
Assim começou sua imersão prática no audiovisual: trabalhou em uma distribuidora (Difilm), acumulando funções como maquiadora, câmera, montadora, e produtora, aprendendo “na marra”, sem treinamento formal. Em casa, Adélia encontrava formas improvisadas de preservar seu material de trabalho ela já relatou guardar negativos de filme em uma geladeira doméstica.
Um marco histórico: Amor Maldito
Em 1984, em meio à ditadura militar, Adélia lançou Amor Maldito, filme inspirado em uma história real de romance entre duas mulheres e tragédia familiar. Sem apoio institucional a Embrafilme, órgão público de financiamento, negou recursos ela reuniu uma equipe voluntária para tornar o longa realidade.
Para conseguir exibição, Adélia precisou aceitar que seu filme fosse classificado como “pornochanchada”, um rótulo estigmatizante, mas que na época garantia salas de exibição. A coragem da cineasta era clara: ela sabia que enfrentava preconceitos por ser mulher, por ser negra, por tratar de relações queer , mas mesmo assim “foi com a cara e coragem”.
Máscaras retiradas: os temas reais em sua obra
A filmografia de Adélia não se deteve em ficção. Desde cedo, ela usou o cinema para dar voz a realidades marginalizadas. Seu primeiro curta, Denúncia Vazia (1979), retrata a história de um casal de idosos despejado por aplicação da chamada “lei da denúncia vazia” uma legislação que permitia a retomada de imóveis sem justificativa legal. Em outras produções, ela continuou a resgatar vivências invisibilizadas, dialogando com injustiças sociais, raciais e políticas.
Reconhecimento tardio e legado
Apesar de seu pioneirismo, Adélia só reconheceu publicamente seu lugar como “primeira cineasta negra do Brasil” anos depois, por meio da historiadora Edileuza Penha de Souza, que pesquisava a participação de mulheres negras no audiovisual. A partir desse momento, sua trajetória começou a ser resgatada: foi criada a Mostra de Cinema Negro Adélia Sampaio, referência para novos cineastas e estudiosos.
Em 2025, o IMS (Instituto Moreira Salles) dedicou uma retrospectiva à sua obra, exibindo filmes em cópias históricas e novas digitalizações – um reconhecimento institucional do legado de quem “transformou sobrevivência em estética, dor em narrativa e precariedade em potência criativa”.
Inspiração para a nova geração
Hoje, Adélia Sampaio é celebrada não apenas por seu pioneirismo, mas como símbolo de força para cineastas negras, LGBTQIA+ e para todos que buscam romper com padrões estéticos e sociais. Segundo reportagens, sua vida continua a inspirar realizadores que veem em sua jornada um ponto de partida para narrativas mais diversas e autênticas.
Como ela mesma disse ao olhar para o passado: “Saí daquele cinema e disse: ‘Eu vou fazer isso’. E fiz.”
por Regina Papini Steiner